Podemos viver uma vida, podemos viver muitas mais, mas será que não há memórias que permanecem?
Até que ponto o que de nós sai e julgamos ser ficção, será mesmo fictício?
Boa questão! Ouvia há momentos a música do Sting «A thousand years» e fez-se um clic. Ele parece estar a falar em reencarnação, senão, vejamos a letra aqui.
Leiam, se quiserem, com atenção a história que se segue...
Dei-lhe o nome de "Lembra-te de mim"
Prólogo
Castanho profundo no meu coração
Acordo sobressaltada. Milhares de gotas minúsculas de suor afloraram-me à pele: tenho tanto calor! Ainda não é totalmente a época do frio, mas talvez o edredão de aquecimento seja demais.
“Que horas são? Já estarei atrasada para o trabalho?”
3.59, indica o vidro do telemóvel novo, aquele telemóvel 24 horas sempre ligado, que ultimamente não toca muito. Sei que voltei a sonhar o mesmo.
“Maldito livro sobre as vidas passadas! Devia saber que ao fazer de novo como dizem as instruções, acabaria por abrir uma porta para outras vidas… ou para a minha loucura! Se já adivinho previamente tantas coisas que vão acontecer, se aprendo as pessoas de cor no momento em que as vejo, por que motivo ainda fui fazer como diz no livro para conhecer as minhas vidas passadas?! Achei que eram tretas! Morri de novo afogada! E os olhos castanhos profundos, lindos? De novo? O que significam?! Por que é que nesta vida me apaixono sempre pela intensidade de uns olhos castanhos profundos?”
Apeteceu-me gritar a plenos pulmões o “porquê” de tal facto. Era verdade, pois. Isso já eu sabia. Achava os azuis extraordinariamente bonitos, mas era apenas isso. Eram sempre os castanhos, aquele tom de castanho especial, profundo, com negras pestanas a rodearem-nos, que acabavam por me deitar por terra e fazer o meu coração bater a mil, os joelhos tremerem, descoordenar pernas e braços e dizer coisas tão estúpidas e despropositadas que, dir-se-ia, era uma autêntica totó.
No dia seguinte falava com o P* no Messenger, uma das mais recentes novidades da minha feliz civilização e foi então que me lembrei.
- Sabes, acho que já sei por que não sei nadar. É que eu… vais achar que sou maluca, mas talvez também já aches isso, portanto, aqui vai… É que eu já morri afogada. Muitas vezes. E esta noite sonhei com isto de novo. Mas o sonho era diferente. Também acho que já percebi por que gosto tanto de neve.
- Conta-me
- Oh, vais achar mesmo que sou maluca. Eu já acho! Mas foi tudo tão real!!! Acho que se fosse investigar iria descobrir que é mesmo assim que morrem as pessoas afogadas em águas frias. É como se milhares de agulhas nos trespassassem o corpo no primeiro embate, depois parece que estamos repletos de chamas e tudo arde até ficarmos dormentes, sem sentir nada. Sou mesmo maluca!!! Desculpa lá isto!
- Não és nada. Conta lá. Fiquei curioso.
- Ok, mas depois não digas que não te avisei… É desta que vais achar que sou mesmo maluca e nunca mais vais falar comigo…
I
“Era dia nacional. 17 de Maio. O dia estava extraordinariamente solarengo, mas o Inverno glacial ainda estava para durar. Era bastante normal. Estávamos muito a norte e ali era perfeitamente natural cair neve durante grande parte do ano.
Sempre adorei neve, mas este dia estava particularmente bonito, com as goteiras da minha casa cheias de estalactites cristalinas, pendentes, do telhado, ameaçadoramente prestes a cair a qualquer momento. Mas isso não me assustava. De facto, nada relacionado com a neve me assustaria alguma vez. Considerava-a sempre minha aliada. Aliás, terei de dizer “nossa aliada”. Sorri, corando imenso. Corava sempre quando pensava nele. A minha mãe dizia que eu era ainda muito nova, uma adolescente que via o mundo cor-de-rosa, bem, branco pacífico e romântico, altero eu. Porém, ele pensava exactamente como eu, a sua Princesa do Gelo. Sorri de novo. O meu Príncipe das Montanhas!!!
Tinha a certeza que nunca nada nos iria separar. Ele assim prometera. E no fim-de-semana anterior tínhamos feito um juramento de neve. Aquelas coisas típicas de miúdos apaixonados! Picáramos os nossos dedos e depois, bem unidos, enterráramo-los na neve, sentindo um misto de frio e calor. Agora que penso nisso, não sei se era o frio da neve a queimar a picadela, se era o amor que sentia por ele a agitar minúsculas corujas albinas na minha barriga, com tanto entusiasmo perante o juramento.
Subitamente, até me pareceu que a neve se tornava mais luminosa e que todos os cristais minúsculos que caíram no início da noite anterior se tornavam mais luminosos, como se fossem confidentes do sentimento tão forte que nos unia desde crianças. Não havia dúvidas. Desde que nos conhecêramos por gente que um seguia o outro por todo o lado, sendo ele o altruísta e corajoso e eu a frágil princesa desastrada, sempre a necessitar de ser salva. Pois, é que, para ser muito sincera, eu tinha uma propensão enorme a tropeçar nas rochas escondidas, a cair nos buracos cheios de neve, a embater de frente contra a rama congelada das árvores sempre que esquiávamos juntos, entre outras listagens de pequenos incidentes.
Ele estava sempre lá, não direi bem a salvar-me, mas a garantir-me sempre umas boas gargalhadas. Eu amuava sempre que tropeçava ou caía e ele ria desalmadamente, todavia, rapidamente lhe achava piada, atirando-lhe bolas de neve bem grandes, com toda a força, juntando-me a ele em súbitas risadas que ele sempre comparava a quedas de água dos riachos adormecidos no início do degelo.
- Pareces uma fada! Não, uma princesa. És tão bonita como os primeiros nevões que põem tudo a cintilar e cujo frio nos faz sentir sempre mais vivos, pelas nuvens que exalamos ao respirar. Adoro-te!
Fora assim a primeira declaração dele. Acho que tínhamos perto de uns três anos, não mais. Ele disse isto e ofereceu-me uma flor azul celeste, como os icebergues que víramos no passeio de domingo, havia alguns meses.
- Como os teus olhos. – dissera ele.
- Prefiro o castanho dos teus! Lembra-me o renascer da terra após cada estação fria. Lembra-me que a vida volta sempre a renascer.
- Mas eu gosto mais dos teus. És uma princesa-fada de cabelos negros e olhos azuis. Vou gostar sempre de ti! – e os seus pequeninos olhos de criança, muito castanhos, muito intensos, tornaram-se ainda mais brilhantes. Até mesmo as suas pestanas negras pareceram de súbito diferentes, mais bonitas. E achei-o ainda mais belo pela forma como me fez sentir tão especial. Tanto e da mesma forma como eu o via a ele.
- Princesa! – insistiu ele esticando-me a pequena e delicada flor azul. Não sabia onde a arranjara ele no meio de tanta neve, mas ele era sempre capaz das proezas mais incríveis para me impressionar. Aprenderia isso nos anos que se seguiram. Aquela flor azul…!
E eu senti-me mulher pela primeira vez. Senti-me realmente uma princesa de contos de fadas. Aquilo nada tinha a ver com sonhos de criança, eu bem o sabia! E soube, no íntimo do meu coração, alma e ser, ainda que em tão tenra idade, que já havíamos feito juras como aquelas antes. Mas já me estou a desviar daquilo que queria revelar. Sabem, o amor eterno é mesmo assim. Simplesmente amamos, achamos o outro belo sem saber porquê e, depois, perdemo-nos na nossa objectividade simplesmente por sentirmos dentro de nós uma grande paz quando finalmente percebemos a origem de todo aquele sentimento. Acho que vão gostar do que vos vou contar. Espero que não chorem. Não há finais tristes ou infelizes e esta história ainda não acabou.
Bem, como vos ia contar…
Era dia nacional. 17 de Maio. O dia estava extraordinariamente solarengo, mas o Inverno glacial ainda estava para durar. Tudo à nossa volta era belo e branco. E o sol fazia brilhar tudo, sendo os cristais de gelo portadores de milhares de pequenos micro-cosmos, adocicados pela magia de pequenos arco-íris que eu idolatrava desde criança. Era o dia perfeito.
Como sempre, ele veio buscar-me a casa, mas nesse dia não vinha sozinho. O restante grupo já estava com ele, eu era a última. Corri para ele sem esconder o meu entusiasmo, atirando-me nos seus braços, com o vermelho das minhas bochechas a destacar-se no meu rosto pálido com as duas safiras, que me serviam de olhos, a brilharem sempre de forma mais intensa a cada novo reencontro. Timidamente dei-lhe um beijo na cara, afinal, a minha mãe estava a ver, espreitando pela janela, ainda que eu não conseguisse ver sequer uma pontinha da cortina afastada. Sabia que ela não levava a sério este nosso namoro. Não a censurava. Ainda éramos muito novos, no entanto, eu sabia que seríamos sempre eu e ele, que ninguém compreenderia este nosso laço, esta ligação tão forte que eu insistia com ele “vir de outras vidas”.
Íamos para o lago, contudo, desta vez não seria para patinar, com muita pena minha. Era algo que fazia realmente bem e adorava a forma como ele me olhava, sentado no tronco velho, os cotovelos apoiados nos joelhos e as mãos no queixo, destacando-se apenas o seu olhar intenso por baixo dos seus gorros, que alternavam entre o vermelho, azul-escuro e o verde. Eu podia até estar a patinar, fazendo incontáveis piões como adorava, na extremidade oposta do lago, mas conseguia ver de perto o seu olhar profundo e amistoso, admirando-me como sempre fazia aos domingos de manhã.
Naquela manhã as três raparigas muito loiras, ele e o seu outro amigo eram a minha companhia. Lá chegados, entreteram-se com batalhas de bolas de neve. Riam sem parar e eu ria com eles, mas, devido à minha natureza curiosa, não fiquei muito tempo naquele jogo. Comecei a caminhar, avançando mais para o centro do lago congelado e olhando em volta. Era uma sortuda por me ser permitido viver num sítio tão lindo. Não sei como havia tanta gente que detestava a neve. Podia ser tão mágica, tão linda! E aquele frio cortante de manhã fazia-me sempre dar graças por estar viva, ter a mãe e os amigos que tinha. E, claro, tê-lo a ele. Sempre!
Devo ter-me distraído a andar, pois ouvia-os mais longe a cada passo que dava. Olhei para trás, com o sol a incidir nas árvores despidas por trás deles e sorri. Os seus gorros multicoloridos destacavam-se muito bem, qual sombras recortadas, naquela paisagem tão branca e luminosa. Que doidos. Mas estavam tão felizes! Nem ele dera pela minha ausência. Ria tão alto que o meu coração ainda se sentiu mais alegre e confiante. Ele tinha sempre um sorriso tão aberto, tão fácil, tão típico e inocente como o de uma criança. Jamais poderia esquecer aquele sorriso!
Olhei para o chão enquanto caminhava, numa zona do lago onde o gelo se tornava mais fino e transparente. Que segredos esconderia? Caminhei a passo mais acelerado, sempre olhando para baixo, pois parecia-me conseguir ver uma sombra de algo deslocando-se sob o gelo. Provavelmente uma foca. Se bem que, como sabia, ali não deveria haver nenhum buraco por onde pudesse emergir. Coitada! Será que se tinha perdido?! Avancei, pensando já em ajudá-la, quando confirmei tratar-se mesmo de uma foca. Dava voltas e reviravoltas sob a superfície gelada bem abaixo dos meus pés. Quase podia tocá-la. Talvez se a conduzisse para algum sítio onde o gelo fosse mais fino, a pudesse ajudar a sair para respirar. Pobrezinha! Era tão pequenina e frágil! Decerto se tinha perdido da mãe e agora se via em apuros.
Corri para a extremidade mais próxima, a ver os meus amigos, agora qual pontinhos luminosos de uns rabiscos de criança, ao longe. Já não os ouvia. Aliás, ouvia-o só a ele, mas isso acontecia-nos com frequência, mesmo quando estávamos mais longe um do outro. Agarrei num comprido e franzino ramo e corri para a zona que me pareceu mais fraca em toda a superfície do lago. A pequena foca seguiu-me ansiosa, de olhos pedinchantes, quase a sorrir por ver que estava determinada a ajudá-la. Escolhi e marquei o local onde ia partir o gelo. Depois, afastei-me, pronta para embater no gelo com toda a força! Como não conseguia ter muita sensibilidade e o galho me caía das mãos com facilidade, descalcei a minha luva direita, atirando-a para longe, mal a agarrei do chão. Nesse momento, o meu cachecol voou pelos ares, levado por uma súbita e glacial brisa que me despenteara o cabelo que surgia, muito solto e comprido, por baixo do gorro azul, caindo-me pelas costas às madeixas, cada uma mais escura que a outra.
Preparei-me para o embate, mas, como estava muito afastada, o ramo apenas bateu na diagonal e escorregou-me das mãos, estatelando-se a meio metro do sítio onde me encontrava.
“Pauzinho estúpido e insuportável!” – pensei, agarrando-o com força com a minha mão nua enquanto o repreendia e ameaçava mentalmente. “Se eu o chamo, vais ver o que te acontece”.
Sem pensar, atirei um forte golpe para o chão mesmo a meus pés. Infelizmente, apercebi-me demasiado tarde do meu erro. A foca bebé afastou-se, temerosa e, numa fracção de segundos, que a mim me pareceu durar uns longos minutos, o gelo emitiu um craque desajeitado, resmungou e quebrou-se, puxando-me com os pedaços destruídos do seu espelho gélido, para as águas profundas do lago.
Sempre fora uma boa nadadora, mas o embate na água, muitos graus abaixo de zero, não poderia ter sido nunca preparado para um corpo como o meu. Milhões de agulhas invisíveis vieram ao meu encontro, furando-me a roupa com uma rapidez tal que nem sequer consegui emitir um grito. O meu gorro de lã azul-escuro com uma tosca bola na ponta foi a primeira coisa a cair para o azul intenso das águas do lago. Enquanto o observava a cair, reparei que o impacte do frio me fez contrair o diafragma e parar de respirar. Sentia mesmo o coração a bater descompassado nos meus ouvidos, após uma súbita pausa, para mim demasiado longa, após o choque inicial.
Ele prometia, com todas as suas forças, que seria sempre o meu guardião e eu perguntava sempre o que iria acontecer se um de nós morresse primeiro. Ele dizia que eu era tola, que nada nos iria separar e que teríamos sempre a neve como aliada. Eu perguntava com alguma frequência, quebrando os nossos silêncios apaixonados, como sabia ele que nos iríamos lembrar dos nossos juramentos, se morrêssemos e nascêssemos outra vez. A resposta era sempre a mesma: que eu era tola e que teríamos sempre a neve como aliada. E depois de me dar um longo beijo na testa e de me segurar ternamente pela cintura ele acalmava as minhas conversas filosóficas e dúvidas existenciais com um “Princesa, nunca nos iremos esquecer um do outro. Ninguém o vai permitir!”
Senti-me cair, mas não fiz ruído algum. Andava tão feliz! Nem me apercebi do que me estava a acontecer! Parecia um sonho! Demasiado surreal para ser verdade. Como poderia eu estar a cair e ainda apreciar a beleza que via em meu redor, na água gélida, a vários metros da superfície?
Achei sempre que não iria passar dali. Sabia que ele me viria salvar. Ele tinha jurado! Mas ninguém me viu cair!!! Ele foi o primeiro a dar pela minha falta e sentiu que algo estava mal.
O peso do casaco ensopado transformou-se num abraço mortal, demasiado doloroso e gélido, e sentia cada vez mais pressão no meu peito... Ouvia o barulho da água agitada enquanto tentava em vão nadar em direcção à luz solar. Consegui subir um pouco, devido à minha força braçal de nadadora e estava-lhe agora mais grata por me ter obrigado a aprender e a treinar furiosamente nos verões anteriores, ainda que a água fria me forçasse mais a sair da água do que a tentar nadar. Fui bem sucedida por momentos, mas… não era suficientemente forte.
Foi nesse momento em que estava a conseguir realizar os meus intentos que vi a foquinha. Era assim esbranquiçada com manchas cinzentas. Não, não eram bem manchas. Eram pintas, acho eu. Ela percebeu que eu ia morrer. Tinha um olhar lindo e profundo e lamentou por mim, mas não me podia ajudar. Julguei ter ouvido a foca a dizer que tinha pena, que ainda era cedo demais para mim, porém, havia algo que tinha mudado e era o meu fim. Perdi nesse momento o meu sentido de audição e comecei a sentir o meu corpo de forma estranha. Talvez já nem o sentisse. Já não tenho a certeza.
A minha mãe sempre disse que há uma lenda na Noruega que fala nos espíritos do tempo. Não são directamente maus, mas andam solitários e infelizes e podem levar à perdição pessoas boas, apenas por quererem companhia para a eternidade. Ela sempre me avisou, sublinhando que todas as lendas tinham o seu quê de verdade, e dizia sempre para nunca me afastar demasiado nem me deixar cativar pelos animais da florestas ou fascinar pela beleza estonteante das plantas e árvores, em especial no Inverno. “É tudo ilusório, minha querida, e é nessa altura que os espíritos do tempo podem sair sem serem vistos. E, se forem, ninguém os temerá pois apenas parecerão ao olhar mortal, pobres criaturas sem rumo, ali à espera de serem ajudadas”.
Via nos olhos daquela criaturinha frágil muito mais emoções do que seria possível num animal. Via emoções humanas. Via a minha vida passar-lhe pelos olhos de um ar inocente. Via naqueles olhos os olhos dele e, finalmente, vi-me a mim, primeiro vermelha do impacte, depois roxa e, ao fim de apenas um minuto na água gélida, já azulada perdendo a luta pela vida a favor do tempo…
Deixei de ouvir. Sentia uma pressão intensa nos ouvidos e queria abrir a boca e respirar ar, mas não conseguia. O oxigénio de que tanto precisava estava-me, naquele exacto momento, totalmente interdito. Quando finalmente não aguentei mais e abri a boca, gritando desesperada (talvez por ele), entrou-me água nos pulmões e, nesse momento, também as minhas entranhas ficaram como a neve que eu tanto apreciava: paradas no tempo, imortais, bem preservadas qual clique fotográfico e imóveis como só Deus sabe.
Sentia o coração nos ouvidos, o peito prestes a rebentar... Uma dor de cabeça insuportável, com muita pressão, no que os hindus chamam o terceiro olho, e um silêncio parado que me chamava cada vez mais, acolhendo-me nos seus braços mais calorosamente do que eu poderia desejar. Era um silêncio não partilhado. O meu primeiro. E eu comecei a deixar-me ir. Estava cansada e, afinal, só queria descansar um pouco para poder, posteriormente, lutar com todas as forças pela minha vida. Queria fechar os olhos, mas estavam estáticos, não conseguia perceber porquê. Tudo estava parado. Depois, subitamente, alguém me puxava e gritava de forma ansiosa por mim, dentro de água, como se fosse um golfinho.
Arrastaram-me... Ele não estava bem também. Atirara-se meio despido para o buraco sem pensar duas vezes, sem sequer ter confirmado que eu tinha mesmo caído. Os outros não queriam e tentaram agarrá-lo, desesperados pelos seus gritos e angústia ao chamar por mim, enquanto por dentro o seu coração chorava por já ter adivinhado tudo.
Não sei como, mas arranjou uma força descomunal para me trazer de volta à superfície. Senti o meu corpo a ser arrastado nesse momento. Sentia uma dor intensa. Quando caí à água gelada fui ferida mortalmente. Doía tanto! Depois senti um fogo violento que me queimava e punha dormente... e a pressão no peito, os ouvidos a apitar...! Mas, ao mesmo tempo, o azul lindo, os olhos da foquinha bebé… Tudo tão maravilhoso!!!
Segundos antes de perder a consciência, senti que me agarravam com força, num abraço quente, apesar da temperatura contrária das águas do lago, e vi-o. Se o gelo não me tivesse já paralisado os músculos do corpo todo sei que lhe teria sorrido nesse momento. Era ele que me vinha salvar! Tão lindo, mas com um ar tão desesperado.
“Vieste!” – sorri, exclamando-o apenas em pensamento. Senti-me feliz. Serena. Em paz. Mas este era um pensamento do qual ele nunca iria tomar conhecimento.
Apercebi-me que já estava desmaiada pelo olhar dele. Vi-me nos seus olhos. Ainda lhe parecia bonita. Senti isso, mas o que ele viu no momento em que me voltou para ele, antes de encetar a batalha de nos levar de volta ao mundo superior, era um ser cadavérico, eram uns olhos cor de safira esbugalhados, lábios azuis, olhos a condizer, também verdadeiramente azuis, mas mortiços, vidrados... Acho que eu parecia uma estátua de olhos muito abertos e livres de quaisquer sentimentos mortais e o cabelo alvoraçado, espalhado na água em sentido vertical, muito negro em contraste com o azul magnífico da água.
Lembro-me vagamente de estar deitada numa cama, ainda molhada, mas praticamente nua, toda tapada, num quarto muito quente e abafado, coberta com uma colcha ou manta acinzentada. Acho que me tentavam por compressas de água quente na cara para me aquecerem e/ou reanimarem. Mas eu já não tinha frio. Não tinha sequer dores.
Tinha agora consciência de que via o meu corpo de cima para baixo, como se pairasse no ar acima dele, alheia a muitas coisas, mas atenta a todos os detalhes. Não sentia cheiros e acho que não ouvia, mas sabia tudo o que eles sentiam e pensavam, quase como se eu fosse um ser superior. Olhei-me e vi-me, por fim, tal como estava após a queda no lago: um corpo pequeno, magrinho, muito frágil e gelado, de tonalidade azul acinzentada. Já não sentia frio ou dores. Senti-me a ser puxada ainda mais para cima. Não queria ir! Ela estava a sofrer muito e eu não queria ir por esse motivo.
Senti-me agarrar por uns braços de luz, pelas costas, num caloroso e quente abraço. Diziam-me para ir, que tinha havido uma alteração de planos, mas que ia ficar tudo bem. Eu não queria ir, não queria que ela sofresse e tinha medo que ele perdesse o brilho dele, aquele sorriso tão branco, tão aberto, e o brilho nos olhos negros que sempre me fez acreditar que tudo era possível.
Sei que falávamos, eu e o tal ser de luz, que eu não via porque me abraçava pelas costas... talvez não o visse por insistir em observar o que se passava junto ao meu corpo, mas disso não podia ter certeza. Falávamos pela mente. Sei que perguntei por ela: ele disse que ficaria bem. Tenho também consciência que perguntei por ele e se o voltaria a ver. Foi-me dito que sim, voltaria a ver os dois, mas, desta vez, iria demorar mais. Seriam tempos mais difíceis mas quando fosse a hora eu ia saber de tudo.
Tinha medo. Eu sabia que ia apagar as memórias daquela vida. Ele disse-me que há aquelas que nunca se perdem e que a isso se chama um dom. Acrescentou ainda que apesar de eu nada perceber, isso iria sempre comigo. Disse-me para não ter medo ou chorar, contudo, não me soube explicar por que morri. Limitou-se a afirmar que tinha sido cedo demais, mas necessário, que afinal ainda não era aquela a vida em que eu e ele deveríamos ficar juntos. Sei que voltei a perguntar por ela: vai ter mais filhos. Nunca te esquecerá, todavia vai ser feliz e mais forte. Nunca te vai esquecer, tornou a garantir-me.
Eu tinha a certeza que os laços com ela nunca me abandonariam, mas não tinha assim tanta certeza quanto a ele. Confessei ao ser de luz, que agora me confortava num abraço quente, que quebrei a promessa. Respondeu-me calma e sabiamente que ele, o rapaz, me perdoaria, mas que desta vez demoraria mais tempo até nos reencontrarmos. Não o iria reconhecer logo, porém devia procurar o que mais gostava nele.
Perguntei se seriam os olhos castanhos negros, ele riu-se. E depois senti uma calma e uma paz imensa, como não me lembro de ter sentido antes. Sabia, no entanto, que já a havia sentido. Foi isso que aquele ser também me transmitiu sem sequer necessidade de usar palavras. O seu abraço apertado dizia-me tudo o que eu precisava e queria saber. Ouvia as respostas antes mesmo de formular as questões na minha mente. Deste modo, já não tinha pena de abandonar o meu corpo. Parecia apenas um embrulho vazio, mesmo assim lembro-me de olhar e pensar que devia mesmo ter sido linda, que mesmo roxa ali deitada inerte naquela cama parecia mesmo muito bonita. E ele disse que era, que o exterior é fruto do que geramos no nosso interior mas que não iria ser sempre assim. Mais tarde haveria formas de esconder a maldade interior e ser-se muito belo fisicamente. Avisou-me para desconfiar sempre dos belos, para não confiar neles. Pediu-me para procurar pelos olhos.
(...)
Epílogo
Agora acordo do meu sonho, com milhares de gotas de suor escorrendo-me pelo corpo magro, o cabelo comprido e escuro completamente encharcado ...
(...)
Reconheço agora também a minha preferência pelos olhos. Castanhos profundos como os teus. No entanto, houve muitas alturas em que me enganei nos olhos. Eram parecidos, sorriso também, mas, sempre no último momento, conseguia perceber que não eras tu, que ainda não era aquele que estava comigo a pessoa por quem sempre esperei sem saber.
Neste mundo moderno, adormeço, indecisa, no meu quarto, onde finalmente admiti um espelho, esticando-me desamparada sobre a grande cama, entre as minhas duas almofadas. Lanço um olhar ao visor do telemóvel, desculpando-me com a confirmação das horas, mas, no fundo, sei que era apenas uma forma de me lembrar de ti, agora novamente silencioso.
Apago a luz e desejo ardentemente ter mais memórias daquele nosso mundo que, de facto, não sei bem identificar como Noruega ou Rússia (que tanto me fascina) ou como outro qualquer país gelado.
Peço agora a Deus, em quem nesta vida acredito firmemente, que me permita regressar àquele nosso mundo, numa vida em que ainda que por um curto período de tempo fomos felizes, juntos os dois. A única vida até agora. Peço-lhe que me deixe regressar e reviver mais momentos, em que trocámos promessas de amizade e amor, dias gelados em que foste o meu companheiro de jogos de crianças, em que me aturaste a rebeldia digna das pessoas curiosas como eu.
Lamento e tenho imensas saudades dos dias em que me deixavas deitar a cabeça no teu colo, quando me abria e despedaçava em mil lágrimas por não conhecer o meu pai e tu, no silêncio de um gesto, me afagavas o cabelo, com as tuas mãos sempre tão quentes (quando as minhas eram tão sempre tão geladas), me beijavas suavemente a face, que ficava ainda mais rosada perante o teu toque, e me sussurravas docemente ao ouvido, com a tua rouca voz intermédia de adolescente quase adulto:
- Chiuuuu, princesa! Não tenhas medo! O teu príncipe chegou. Estou aqui agora! Não chores mais… Lembra-te de mim!
Adormeço agora, nesta vida, longe de ti, com a tua imagem na memória destes dias, mas também dos das outras vidas, em especial daquela em que não consegui manter a promessa e repito o silencioso pedido que te fiz quando parti, o mesmo que sempre me fazias quando o sol desaparecia dos meus lábios e os meus olhos azuis pareciam um céu cinzento e carregado, prestes a desabar num forte nevão:
Lembra-te de mim. Por favor! Reconhece-me! Lembra-te…
Lembra-te de mim!
2 comentários:
Lembra-te de mim?
RICORDATI DE MI-Antonello Venditti
Ouve no Yt e vais gostar.
B
Humm, não conheço. Vou ouvir!!! :)
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